Mulheres, mães de água

Neste 8 de março homenageamos as mulheres do mar e a sua força de trabalho, uma força que, para o exterior, é o lado mais invisível da pesca, mas que sabemos serem pilares no trabalho do setor e nas suas comunidades.

Há exceções como em tudo e conhecemos felizmente casos de igualdade e fraternidade entre géneros, seja na vida privada seja no espaço público, no mundo do trabalho.
Mas a realidade dura dos números impele-nos a, ano após ano, dizer o mesmo. Cada vez estamos mais longe em matéria de igualdade entre homens e mulheres.

E este ano, uma vez mais, soa o alarme na Organização das Nações Unidas. O secretário-geral, António Guterres, lançou um aviso aos líderes mundiais: a igualdade entre mulheres e homens no mundo é um objetivo cada vez mais distante, “os direitos das mulheres estão a ser abusados, ameaçados e violados em todo o mundo” e que “o progresso feito durante décadas está a desaparecer diante dos nossos olhos”. Segundo o secretário-geral da ONU, “serão necessários 300 anos para alcançar a igualdade” (ver aqui).

A Organização Internacional do Trabalho, OIT., sustenta por seu lado que as desigualdades de género no emprego são maiores do que se pensava. Novo indicador desenvolvido pela OIT, constata que o acesso das mulheres ao emprego, as condições de trabalho e a disparidade salarial tiveram uma melhora mínima nas últimas duas décadas (ver aqui).

Para a OIT, as novas estimativas destacam o tamanho das disparidades de género nos mercados de trabalho, ressaltando a importância de melhorar a participação geral das mulheres, alargar o seu acesso ao emprego em todas as atividades e abordar as lacunas gritantes na qualidade do trabalho que as mulheres enfrentam.

No trabalho da pesca acresce a informalidade com que é tratado o trabalho das mulheres nas tarefas de apoio em terra ou as dificuldades na conciliação da vida profissional com a vida familiar, sobretudo para as mulheres mães.

Partilhamos aqui um excerto da história de Maria de Lurdes Baptista, de São Miguel, Açores (armadora de pesca, dirigente associativa e dirigente local da Mútua dos Pescadores), contada na “Língua da maré”…. e através dela queremos homenagear todas as mulheres, mães de água, e todas as mulheres do mundo!

…E no entanto, Maria de Lurdes Baptista nunca deixou de ser esposa e mãe, ocupada com a casa, com a pesca, que o marido teve de deixar aos 40 anos, por causa de uma doença crónica, e com os filhos, que na segunda gravidez lhe chegaram em dobro, surpresa que lhe dificultou, então, a vida. Já como armadora, a gerir a empresa familiar, temeu, nesse acidente de 2016, perder o mais velho e um dos gémeos, que com outros dois homens, compunham a tripulação do Rainha de Iemanjá. Porquê Iemanjá?, pergunto-lhe, não desconhecendo o sincretismo que já pressentira noutras casas de mareantes. “É a minha mãe. E salvou os meus dois filhos.”

…Escuto a sua história, e regresso a casa, à coragem da Maria Balé, que quase aos 50 anos fez a quarta classe para obter a cédula e ir ao mar com o marido; recordo a incrível saga das mulheres-arrais de Vila Chã; ou a ida à praia de Castelo de Neiva, onde conheci Maria José Neto, dona do Esperança e líder da Associação local de pescadores. E procuro, na estante, outra Maria de Lurdes, o nome a que recorri há 25 anos, na primeira reportagem que escrevi e publiquei, para ocultar a identidade de uma conterrânea que se fizera ao mar com o pai, furtivamente. Releio o texto, sabendo hoje que, por essa costa, há mais Sonhos de Mar em Corpo de Mulher do que então imaginava.”

(© Abel Coentrão, texto, e Helder Luís, fotografia, Na língua da maré,
crónica “Mães de água, sonhos de mar em corpos de mulher”, p.133-135)